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BookTok e Além: como as redes sociais estão transformando o consumo de livros pelos jovens

Por Maria Eduarda Sousa e Sofia Capanema



Não é segredo que as novas gerações estão hiper conectadas e que as relações humanas, sejam entre si ou com o meio, estão, consequentemente, sofrendo alterações. Essas mudanças, no entanto, vão muito além de simples interações no ambiente digital. Elas impactam diretamente a forma como os jovens se percebem e se relacionam com o mundo. Com o avanço da tecnologia, a exposição a novos conteúdos e ideologias se intensificou, tornando a experiência de crescimento e desenvolvimento um processo ainda mais complexo e desafiador. Para orientação, deve-se levar em conta o quão expressiva essa presença online é: uma pesquisa de 2023 realizada pelo Cetic.br, centro de estudos filiado ao Comitê Gestor da Internet no Brasil aponta que 95% dos brasileiros na faixa etária de 9 a 17 anos usam a internet em seu cotidiano. Essa estatística reflete uma realidade onde os jovens se encontram vulneráveis a influências externas constantes, que moldam seus valores e percepções. Faz-se necessário compreender o impacto que esse novo estilo de vida traz, para que a sociedade lide com sua nova realidade da melhor forma possível, especialmente no que diz respeito ao cuidado com as ditas novas gerações.


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Fonte: Indicadores do Comitê Gestor da Internet no Brasil.


Neste mundo no qual o cotidiano de crianças e jovens está gradativamente mais digital,a influência dos algoritmos sobre o que é visualizado se torna cada vez mais relevante e difícil de contornar. A responsabilidade das plataformas em mediar essas influências torna-se fundamental, pois o contato constante pode impactar o desenvolvimento e a visão de mundo dos jovens, exigindo um cuidado redobrado. A exposição a conteúdos pré-selecionados contribui para a formação de percepções e interesses que podem ser inadequados para a idade. A tecnologia, que poderia e deveria servir como aliada no desenvolvimento e educação, muitas vezes se transforma em uma porta de entrada para conteúdos que não respeitam a maturidade emocional do público. Redes sociais como o TikTok ou Instagram possuem algoritmos que tendem a priorizar conteúdos com alto potencial de engajamento e retenção de atenção do usuário.


Essa seleção de conteúdos chamada de algoritmo ainda é uma área muito opaca no que diz respeito à regulação. Um entrevista de Paulo Faltay, professor da UFRJ e pesquisador do MediaLab.UFRJ, para o jornal O Globo, explica que enquanto as  outras plataformas faziam a seleção do conteúdo exibido a partir de redes de amigos ou páginas que o usuário escolhia por conta própria, o TikTok desenvolveu a chamada página “For You”, que amplia essa seleção e passa a sugerir todo tipo de conteúdo partindo do que a rede conclui ser do interesse do usuário, com base na forma pela qual o mesmo utiliza a rede. Assim, vídeos que retém a atenção e obtém interações uma vez, passam a aparecer constantemente.


Entre algoritmos e tendências, a literatura se tornou um fenômeno nas plataformas on-line, e vídeos, fotos e posts transformaram o modo que jovens consomem livros. Kristen McLean, diretora executiva e analista do setor da NPD Bookscan, disse à revista Forbes que as mídias sociais “definitivamente foram um fator” no aumento das vendas de livros nos Estados Unidos,  juntamente com a pandemia em geral, com muitos dos ganhos de vendas no primeiro e segundo trimestres antes que as vacinas contra Covid-19 estivessem amplamente disponíveis. Mas esse fenômeno não se restringiu à América do Norte; “As pessoas compraram muito mais livros [na pandemia].” disse Marcos da Veiga Pereira, presidente do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel) em entrevista para o Agência Brasil. 


Com o aumento de recomendações automatizadas e influenciadas por hashtags populares, livros que exploram temas como como violência, abuso, relações sexuais ou questões psicológicas estão cada vez mais ao alcance de crianças e adolescentes. A exposição precoce a esses conteúdos pode afetar o desenvolvimento cognitivo e emocional dos jovens, influenciando suas percepções e, muitas vezes, gerando confusão sobre temas que exigem uma abordagem mais delicada, uma vez que além da idade, essas questões exigem maturidade.


Diante desse cenário, é preciso debater as responsabilidades das plataformas e como a sociedade pode contribuir para a criação de ambientes seguros para o pleno desenvolvimento de jovens leitores, e isso só pode se concretizar com um trabalho conjunto das grandes empresas e educadores, sejam famílias ou escolas. 


BookTok: o novo mundo dos livros 


A pesquisa do Comitê Gestor da Internet no Brasil, citada anteriormente, aponta que o TikTok é a rede social mais utilizada na faixa de 9 a 17 anos no país, embora a plataforma teoricamente seja proibida para menores de 13 anos. Nesse  cenário on-line, o BookTok surgiu como um fenômeno transformador, revolucionando o modo como os jovens descobrem e consomem livros. A plataforma se caracteriza essencialmente como uma comunidade dentro do aplicativo de vídeos TikTok que conecta leitores do mundo inteiro, especialmente adolescentes e jovens adultos, que trocam recomendações de livros com grande disposição. A combinação de vídeos curtos, com resenhas e reações, impulsionou a leitura como hobbie para adolescentes. Esse novo ambiente ajuda a popularizar rapidamente uma obra, cria tendências literárias e gera listas de leitura que se tornam quase obrigatórias para o público. O efeito dessa comunidade é imediato: livros que recebem destaque no BookTok rapidamente entram nas listas de best-sellers, o que impacta até mesmo as vendas, e passam a atrair a atenção de leitores de todas as idades. 




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Vídeos do BookTok fazem sucesso no aplicativo de vídeos. (Fonte: Reprodução/TikTok)

 


Entre os queridinhos do BookTok está o livro “É Assim que Acaba", de Colleen Hoover, um romance que traz à tona temas como violência doméstica e as consequências emocionais de relações abusivas. Apesar da tentativa de realizar uma abordagem sensível, o conteúdo presente em suas páginas pode não ser o adequado para crianças e pré-adolescentes. Ao tratar de temas que exigem compreensão psicológica e uma visão crítica sobre a dinâmica de abuso, a obra exige mais do que uma idade mínima, exige uma maturidade emocional que muitos leitores nessa faixa etária ainda não desenvolveram. 


Para além do romance contemporâneo, diversos livros de fantasia fazem sucesso entre o público do BookTok. O livro "Corte de Espinhos e Rosas" escrito pela autora norte-americana Sarah J. Maas, criou um mundo fantástico cercado por fadas e criaturas mágicas, mas, com um diferencial. Seu conteúdo incorpora cenas de violência explícita e conteúdo sexual recorrente. A popularidade dessa série de livros entre jovens, no entanto, evidencia uma lacuna na orientação oferecida ao público leitor. 



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Sucessos do BookTok alcançam jovens brasileiros. (Fonte: Reprodução/TikTok.)



Sofia Abreu, uma jovem que teve contato precoce com leituras inapropriadas, relembra sua experiência ao ler o livro aos 13 anos: “Eu acho que eu olho pra trás e eu penso, uma menina de 12, 13 anos, lendo Acotar (Corte de Espinhos e Rosas)? Ela não deveria saber o que é sexo assim. Esses livros me fizeram amadurecer nesse quesito, não era pra eu saber que era assim nessa idade.” Para ela, o contato com esse tipo de leitura deve acontecer de forma saudável, em um mundo no qual a discussão sobre temas complexos como violência e sexualidade seja acompanhada de uma mediação adequada. “Eu deveria ter aprendido gradualmente, e ao invés disso foi só uma bomba que jogaram, tipo, vomitaram informação em mim, e eu falei ok, o que eu faço agora?”


Experiências reais 


A experiência de Sofia ao ler esse tipo de conteúdo em "Corte de Espinhos e Rosas" não é única. Aos 22 anos, Dayane da Silva relembra seu primeiro contato com leituras inapropriadas, acessadas por meio de redes sociais aos 10 anos. Ela descreve como essa experiência a afetou, moldando sua relação com a leitura e influenciando o processo de descoberta de sua própria identidade. “Eu lia escondido e ficava me sentindo culpada”, relata. “Eu ficava muito confusa, quando eu lia aquelas coisas, tipo, como é que as pessoas sentem isso e eu não sinto?” Esse relato é um entre muitos que representam os desafios enfrentados por jovens expostos a conteúdos adultos sem qualquer mediação ou orientação adequada. Muitos, como Dayane, acabam experimentando sentimentos de vergonha e confusão, que vão impactar sua compreensão sobre temas sensíveis ao longo de suas vidas. “Com certeza o meu cérebro não estava preparado para receber tanta informação.”, ela comenta. Suas experiências refletem ainda a falta de cuidado das plataformas digitais com crianças, uma vez que com apenas 10 anos a jovem já era capaz de acessá-las.


A estudante Sofia aborda também que, atualmente, com uma nova compreensão sobre a sua experiência, ela reconhece os potenciais danos dessa exposição. “Hoje em dia eu penso sobre e falo, meu Deus, como eu li isso com 13 anos? Tipo assim, eu de 19 anos eu ficaria embasbacada lendo. E eu li com 13. Então, hoje, eu não leria. E atualmente, eu acho que uma menina de 13 ou 12 anos, ler um livro desse, é  bizarríssimo [...] Eu nem sabia o que certos termos significavam, e eu tava lendo sobre.” A perspectiva de vítimas reais denuncia a seriedade do problema, que é ignorado pelas grandes empresas de tecnologia que controlam os algoritmos e pouco fazem para regular o acesso de crianças.


Algumas pessoas se mostram capazes de identificar as consequências dessa exposição em suas vidas, no entanto, alguns problemas podem passar despercebidos. Ao discutirmos o tópico dos problemas ocultos, uma terceira entrevistada, que preferiu ser mantida no anonimato e que também viveu o contato precoce com literatura inapropriada por crescer imersa no mundo digital, comentou sobre uma grave consequência: o vício. “É difícil admitir, mas sinto que isso gera um vício, mas ninguém fala sobre por ser um vício leve, ou, não sei, fácil de esconder e ignorar. É só um livro, todo mundo pensa, não tem como ser nada demais. Inclusive, quando você é adolescente, todo mundo só te parabeniza por ler muito, sem nunca pensar no conteúdo. Depois que comecei a estudar psicologia, acabei percebendo esse traço em mim mesma e fico me perguntando quantas meninas também vivem isso sem saber”. Isso demonstra que além da percepção individual, é preciso que os responsáveis das crianças fiquem atentos às dificuldades que podem nascer deste tipo de experiência prematura.


É possível solucionar esse problema? 


Nesse sentido, buscamos entender melhor as causas e consequências dessa exposição, e para isso consultamos a professora da Universidade Federal de Uberlândia, Maria Irene Miranda, especialista em Psicopedagogia, que pontua a necessidade de uma educação digital. “Atualmente, as mídias, as redes sociais, os meios digitais, são coisas que vieram pra ficar. Isso é um caminho sem volta, é uma mudança no formato da relação humana. [...] A questão é, como lidar com essa realidade? Então, proibir não é o caminho. A questão é orientar, monitorar e, principalmente, dar exemplo.” 


Assim, a professora explica que a proibição dificilmente cumpre seu suposto papel: “As informações que a criança fica curiosa e não recebe as respostas em casa, ela busca em outra fonte, que é a internet. E às vezes isso vai ser completamente inapropriado, por isso crianças e jovens são mais vulneráveis à vitimização sexual e outros problemas.” Desse modo, a alta de leituras impróprias denuncia que o algoritmo tira proveito da inocência e curiosidade de crianças e adolescentes, utilizando de conteúdos polêmicos e sensíveis para reter engajamento, ao levá-los até publicações nesse estilo.


Para Maria Irene, a solução não passa por proibições rígidas, mas sim por uma abordagem que envolva diálogo e orientação entre pais, educadores e jovens. “Então é colocá-la a par dessas coisas assim, porque aquilo que é omitido, aquilo que é proibido, aquilo que é escondido, estimula a curiosidade, estimula o querer, e quando a gente nega o acesso à informação, a criança vai buscar por outros meios”, defende. Ela destaca que é essencial explicar os motivos das restrições, ajudando os jovens a compreenderem o valor no uso da internet. Além disso, programas de educação digital devem ser implantados em escolas e universidades, e incentivados até mesmo para adultos, pois podem proporcionar a jovens e pais uma base sólida para discutir e analisar o conteúdo que circula nas redes, trazendo uma abordagem consciente e segura para o consumo de mídia. 


Tratamos com a professora outra questão relevante para compreender esse tópico: as classificações indicativas, do modo que já existem e no cenário atual, são o suficiente para determinar aquilo que deve ou não ser consumido por determinado público? “Então, a classificação indicativa, é algo muito difícil de impor uma só. Eu acho que nos oferece uma média, mas que não pode ser olhada de maneira engessada e rígida. Não é a nossa faixa etária que define as nossas condições. [...]  A gente não pode olhar para isso de forma determinante. Como se fosse determinar o interesse ou a condição de entendimento. Então, existem outras soluções melhores.” Essa compreensão reforça o quão relevante é a educação digital, para que cada criança, ao chegar na idade permitida para acessar plataformas, navegue ciente de suas próprias limitações.


A falta de orientação e a escassez de recursos digitais focados em proteger o público infantil e adolescente, aliada ao uso de algoritmos que incentivam o engajamento a qualquer custo, fazem das redes sociais on-line um terreno arriscado para o consumo de conteúdos inapropriados. Porém, soluções práticas começam a ganhar espaço e podem oferecer uma base para proteger os jovens, promovendo a segurança e a educação sem aliená-los do mundo digital. 


Entre essas alternativas, plataformas como o YouTube têm se adaptado para incluir o acesso do público infanto-juvenil de forma equilibrada. O YouTube Kids surge como um recurso dedicado ao conteúdo infantil, que permite aos pais configurar filtros de idade e  supervisionar o tipo de conteúdo ao qual seus filhos têm acesso. “É, as configurações de acesso não são tão exploradas, mas deveriam ser. Realmente tem plataforma que não dá, que não vai contribuir, e aí que precisa ter esse monitoramento, principalmente da família”, observa Maria Irene. Esse monitoramento pode ser realizado através de uma interface amigável em que conteúdo é voltado apenas para crianças, assim, a plataforma Kids representa uma alternativa mais segura do que o site padrão, onde os filtros de conteúdo ainda são limitados. Entretanto, embora essas ferramentas existam, sua aplicação ainda é ineficaz como um todo.


Ao discutir recursos de ajuda e monitoramento, é preciso destacar as plataformas criadas especialmente para esse suporte. A organização não governamental norte-americana Common Sense Media desenvolveu uma plataforma on-line que busca fornecer recursos e orientações para ajudar famílias, educadores e jovens a lidarem com o consumo de mídia e tecnologia de maneira consciente e segura. Através de resenhas e pesquisas, o Common Sense Media avalia uma variedade de conteúdos, como filmes, livros, jogos e aplicativos, com base em critérios como faixa etária, temas abordados e valores familiares. As análises incluem informações sobre linguagem, violência, conteúdo sexual e referências culturais, permitindo que pais e educadores façam escolhas informadas e incentivem uma mediação ativa sobre o que é apropriado para crianças e adolescentes. Alinhada à visão de especialistas como a professora Maria Irene Miranda, a plataforma promove uma abordagem colaborativa para um ambiente digital mais seguro, defendendo que tecnologia e sociedade trabalhem juntas. Em seus valores, lê-se: “Hábitos e habilidades que dão aos jovens autonomia sobre suas vidas digitais e os ajudam a ter sucesso online e na vida.” Esse estilo de solução é uma ótima alternativa, que deve ser divulgada e utilizada, enquanto as plataformas digitais não possuem regulação própria suficiente.

 

Para além de questões apenas de consumo de conteúdo, a organização Internet Matters também desenvolve materiais e recursos que visam aconselhar crianças, jovens e adultos sobre as adversidades do ambiente digital. Através de guias, vídeos e ferramentas, o site orienta as famílias sobre como monitorar e gerenciar o acesso ao conteúdo digital, ensinando estratégias práticas para lidar com essas questões e  criar uma navegação segura. Em adição, a organização compartilha informações sobre temas frequentemente discutidos nas redes sociais, mas muitas vezes deixados de lado no cotidiano, como a importância de reconhecer fake news, informações sobre saúde mental, cyberbullying e até roubo de identidade. Ao proporcionar uma visão ampla dos desafios on-line, a Internet Matters busca não apenas proteger os jovens, mas também empoderá-los, promovendo habilidades críticas e consciência para que possam navegar de forma segura e saudável pelo ambiente digital.


Ao observar esses recursos e plataformas, é possível visualizar o verdadeiro pilar e a grande necessidade da era tecnológica: a educação digital. No cenário específico da leitura inapropriada, essa educação vai além da supervisão do que jovens consomem, focando em prepará-los para lidar com conteúdos que abordam temas complexos, que nem sempre são apropriados para sua idade ou maturidade emocional. O desenvolvimento de uma consciência crítica sobre o que leem é essencial para a navegação segura e responsável no mundo literário digital, onde recomendações impulsivas nas redes sociais podem levar a um contato precoce com temas delicados.


Assim, educação digital não se limita a proteger os jovens de conteúdos inadequados, mas também se estende a capacitá-los para tomar decisões conscientes e desenvolver uma postura crítica sobre suas escolhas literárias e de vida. Como a professora Maria Irene destaca, “É preciso falar em educação digital. As crianças, os jovens, precisam ser preparados para essa ferramenta. Até porque, principalmente as crianças e os adolescentes, eles ainda não têm uma maturidade cognitiva para fazer uma análise crítica daquela situação.”


Iniciativas como o Common Sense Media, o YouTube Kids e a Internet Matters oferecem um suporte importante para diversas necessidades daqueles que ainda estão aprendendo a lidar com o mundo digital. Esses recursos, em conjunto à educação digital, representam um esforço coletivo para criar uma geração que navegue com autonomia e responsabilidade, inclusive no universo literário. E é  essa abordagem colaborativa que, ao unir sociedade, tecnologia e educação, se torna o fundamento para transformar o ambiente digital em um espaço mais seguro e positivo, onde a leitura possa contribuir para o desenvolvimento saudável dos jovens leitores.


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