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Liberdade Reprodutiva: redes sociais, escolha de métodos contraceptivos e medo de engravidar

Por Julia Furtado, Luciene Teixeira e Rayane Timóteo



Mariana (nome fictício) tem 26 anos, não é mãe e afirma que tirou a maternidade da sua vida ainda muito cedo. Indo de encontro ao que a sociedade espera das mulheres, ela nunca gostou de brincar de mamãe e filhinha quando criança, preferia a boneca Barbie, que exercia atividades profissionais diferentes e era independente, e afirma que filhos nunca foram parte do seu planejamento de vida. Por isso, ela usa métodos contraceptivos e, para se sentir ainda mais segura ao manter relações com seu companheiro, juntos há seis anos, quer fazer a cirurgia de esterilização, procedimento que ainda não conseguiu realizar devido à dificuldade de encontrar um médico que não coloque obstáculos a fazê-lo nas condições de idade e de não ter nenhum filho de Mariana.


Adriana (nome fictício), hoje com 32 anos, já era mãe de 3 crianças quando, em nova gravidez, quis ser operada para não ter mais filhos. Na época, seu desejo foi negado porque ela “era muito nova”. Adriana encontrou um novo companheiro, usava, quando o conheceu, anticoncepcional, mesmo assim, teve mais duas meninas, hoje com idade de 8 e 7 anos - a irmã mais velha completará 14 anos na próxima semana. O casal vive em situação de rua, ambos parecem ter transtornos mentais. O pai, enquanto bate no portão de uma residência para pedir um litro de leite, diz que não abandonaram as filhas, que levarão o leite doado para elas, mas não têm condições de cuidar delas, conta que estão com parentes de Adriana. Quando afirmo que, se fosse hoje, Adriana não teria impedimentos para a laqueadura no terceiro parto porque a lei mudou, ela fica pensativa, olhar perdido, talvez imaginando que a vida podia ser menos difícil.


Na concepção do Ministério da Saúde, “A saúde sexual refere-se à capacidade das mulheres e homens, ao longo de suas vidas, de aproveitar e expressar sua sexualidade de maneira saudável, evitando riscos como infecções sexualmente transmissíveis, gestações não planejadas, coerções, violência e discriminação.”. Ainda, faz distinção do que é entendido como saúde reprodutiva, aquela que “envolve o bem-estar físico, mental e social relacionado ao sistema reprodutivo”, com o intuito de “permitir que as pessoas tenham uma vida sexual satisfatória e segura, garantindo uma abordagem abrangente para o cuidado com a reprodução.”. No entanto, a realidade de mulheres na situação de Adriana, de adolescentes grávidas e de jovens que não se sentem acolhidas no desejo de não serem mães, seja na busca por aborto seguro seja na procura por esterilização precoce, como Mariana, demonstra os grandes desafios para assegurar tal saúde.

Liberdade Reprodutiva


Entende-se por liberdade reprodutiva a garantia de toda e qualquer pessoa poder decidir, de modo autônomo, livre e responsável, sobre sua fecundidade, ou seja, se exercerá o papel da maternidade e, em caso afirmativo, em que momento da própria vida e quantos filhos terá. No entanto, esse direito humano é usurpado de muitas mulheres frente a mecanismos que limitam a autonomia feminina, como os padrões sociais, a pobreza, a precariedade do acesso aos serviços de saúde e a desinformação.


A dificuldade de assegurar a saúde sexual e a liberdade reprodutiva é tão grande que esses temas estão entre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), os quais resultaram de uma mobilização entre 193 Estados-Membros da Organização das Nações Unidas (ONU) em prol de combater a pobreza, a fome, as doenças, o analfabetismo, a degradação ambiental e a discriminação contra as mulheres. Essas nações assinaram a Agenda 2030, na qual se comprometeram a manter esforços para atingir os 17 ODS indicados até o ano de 2030. Entre eles, destaca-se o terceiro, voltado para a garantia de vida saudável e promoção de bem-estar para as populações em todas as idades, no qual é assegurado o “acesso universal aos serviços de saúde sexual e reprodutiva, incluindo o planejamento familiar, informação e educação, bem como a integração da saúde reprodutiva em estratégias e programas nacionais”.


No caso brasileiro, a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Mulheres traça as diretrizes a serem seguidas no intuito de oferecer cuidados completos para a saúde das mulheres e promover a autonomia delas, estabelecendo e fortalecendo “ações de prevenção, promoção, assistência e recuperação da saúde”. No que diz respeito à liberdade reprodutiva, o Sistema Único de Saúde (SUS) disponibiliza médicos ginecologistas que devem orientar e acompanhar as mulheres, nas diversas fases da vida, sobre saúde e planejamento familiar, inclusive, a respeito do uso de métodos contraceptivos também disponibilizados pelo SUS.

Plataformas digitais e métodos contraceptivos


As redes sociais exercem uma influência considerável na sociedade, e com a escolha dos métodos contraceptivos pelas mulheres não seria diferente. Uma pesquisa rápida em uma ferramenta de busca online sobre esse tema revela a variedade de informações, discutindo positivamente ou negativamente as opções para a escolha de um método que impeça de modo seguro a concepção.


Há grande quantidade de conteúdos em plataformas digitais que buscam fornecer diversas opiniões para que as usuárias entrem em contato com outras perspectivas - seja de mulheres contando suas experiências seja de médicos especialistas - que podem influenciar na escolha por determinado método. São usados vários recursos, como vídeos, fotos e áudios para apresentar os diversos métodos de prevenção da gravidez.


Porém, essa excessiva quantidade de informações sobre o tema, ao invés de ajudar, pode dificultar a tomada de decisões. A Organização Mundial da Saúde define infodemia como “um excesso de informações, algumas mais precisas outras não, que torna difícil encontrar fontes idôneas e fontes confiáveis quando se precisa”. Dessa forma, informações imprecisas ao lado de outras seguras, na mesma plataforma digital, impactam a tomada de decisões pessoais importantes.


O termo “infodemia” popularizou-se no contexto da pandemia de covid-19, quando houve quantidades excessivas de informações, desinformações, fake news e boatos sobre o tema. Entretanto, essa palavra foi usada pela primeira vez por David J. Rothkopf, cientista político, no artigo “When The Buzz Back”, ainda no ano de 2003. Mesmo não sendo um fenômeno novo, sua ampliação foi impulsionada pela Web e pelo advento das redes sociais, e nomeia um problema que se estende também ao planejamento reprodutivo.


O crescimento das redes sociais teve seu impulso, de fato, no início dos anos 2000, com plataformas que se mantém até os dias atuais, como o Facebook, que foi fundado por Zuckerberg em 2004. Essa transformação digital mudou expressivamente a maneira como as pessoas se comunicam e como conseguem acesso a informações, pois facilitou e acelerou o compartilhamento de ideias. Com isso, a propagação de conteúdos, seja educativos, informativos seja (des)informativos, ganhou circulação mais ampla com diversos emissores e receptores.

Essa ampliação propiciada pelas redes sociais é contraditória. Por um lado, tem-se acesso facilitado a informações importantes, por outro, é preciso lidar com essas mesmas informações com uma dose de desconfiança crítica. De acordo com o artigo do Intervozes que analisa a moderação de conteúdo de várias plataformas digitais, intitulado “Fake news: como as plataformas lidam com a desinformação”, o controle de conteúdos dentro das redes sociais é desinteressado, sem demonstrações claras de que eles são realmente moderados.


A circulação e o excesso das informações sobre métodos contraceptivos nas redes sociais não passam por uma verificação, independentemente se provém de fontes jornalísticas ou oficiais, se ligadas ou não à saúde, e, sem uma moderação precisa sobre o tema, isso facilita a proliferação de informações imprecisas. Esse grande volume de conteúdos informativos pode criar receio nas mulheres que buscam orientações sobre os métodos de prevenção de gravidez nas redes sociais, potencialmente contribui para o desenvolvimento ou para o agravamento de preocupações e dúvidas já inerentes ao assunto.


Embora haja possibilidade nas plataformas digitais de se criar grupos para haver troca de experiências, como sobre a contracepção, existe também a capacidade de abrigar fóruns em que podem circular desinformações. Por exemplo, no Facebook, além das publicações individuais, existem muitos grupos e comunidades que permitem aos usuários discutirem sobre os métodos contraceptivos, e muitos deles possuem milhares de participantes, muitos dos quais não baseiam suas opiniões em estudos científicos.


Um dos grupos é nomeado de “trombose x anticoncepcional”, com mais de 11 mil participantes. Nele, como em outros, são trocadas experiências sobre uso de anticoncepcional em relatos de seus possíveis efeitos colaterais, como a trombose. Porém, mesmo nessa troca espontânea na grande plataforma que é o Facebook, há a necessidade de compreender se informação sobre as chances dessa consequência acontecer têm respaldo em pesquisas, pois ela pode distanciar muitas mulheres de sua liberdade reprodutiva por influenciar suas opiniões.


Outra rede social, conhecida atualmente como X (ex-Twitter), que conta com mais de 564 milhões de usuários mensais ao redor do mundo, o Brasil está entre os três países com maior número de usuários ativos, num total de 16,6 milhões de pessoas. Em agosto de 2024, a rede social foi suspensa do Brasil, pois a empresa não cumpriu a ordem do Supremo Tribunal Federal (STF) de obrigatoriedade de manter um representante legal da plataforma no país.


Nessa rede social, uma publicação da página CHOQUEI, que possui mais de 7 milhões de seguidores, dizia: “mãe que teve filho mesmo usando DIU engravidou com laqueadura”. Esse tipo de conteúdo que compartilha informações sem nenhuma explicação gerou repercussões: mais de 3 mil curtidas e mais de mil comentários, um deles revelava o receio de uma das usuárias “isso me assusta”. Tal formato de postagem influencia muitas mulheres a questionar sobre a eficácia e os riscos improváveis dos métodos contraceptivos, como o DIU e a laqueadura.


Em entrevista, Nairane Pereira, graduanda de Ciências Sociais, explica que, em relação à saúde, no “poço” de informações nas plataformas digitais, tenta-se encontrar o que é mais adequado ao que o usuário procura. No entanto, sem orientações, são acompanhados conteúdos com base na popularidade, sem que se perceba a subjetividade que as postagens carregam, ao divulgar pensamentos, necessidades e decisões pessoais.


A subjetividade influencia diretamente em qual método uma mulher escolhe e como ela se relaciona com sua própria escolha contraceptiva. No entanto, essa discussão é ignorada quando o conteúdo de contracepção nas redes sociais não aborda as realidades individuais. Cada mulher tem sua trajetória única, em que carrega suas vivências, opiniões pessoais, influências culturais e sociais e todas essas experiências individuais são incluídas em como ela percebe e toma decisões sobre sua saúde sexual e reprodutiva.


Sem acompanhamento ao escolher um método, como acesso a informações apropriadas, acolhimento e acompanhamento ginecológico, as mulheres ficam vulneráveis apenas a essa sobrecarga de informações duvidosas e podem guiar-se por orientações errôneas. Desse modo, acontecem decisões arriscadas, pois não houve a consideração dos fatores devidos nesse processo de definição de um método, como as condições de saúde da mulher, a hereditariedade, o estilo de vida pessoal. Alguns métodos hormonais, por exemplo, podem desencadear doenças circulatórias em mulheres tabagistas ou com predisposição a esses problemas.


O Projeto de Lei 2630/2020, conhecido como PL das Fake News, visa regulamentar as Big Techs, por meio de moderação dos conteúdos nas redes sociais e em serviços de mensagens instantâneas. Entre os principais pontos do projeto, estão regras para agentes públicos, remuneração de conteúdos jornalísticos e a exigência de transparência. O objetivo é reduzir a disseminação de notícias falsas, informações enganosas e combater a desinformação.


De acordo com o Marco Civil da Internet, que estabelece um conjunto de regulamentos do uso da internet no país, as Big Techs atualmente não têm responsabilidade sobre o conteúdo divulgado em suas plataformas, mas podem excluí-los, mesmo que não sejam obrigadas a isso sem uma Ordem da Justiça. Com a aprovação do PL, essa ação mudaria, pois as empresas passariam a ter uma responsabilização sobre os conteúdos em suas plataformas e poderiam ser punidas caso não executassem essa moderação.


Em carta conjunta, as plataformas digitais expressam oposição ao Projeto de Lei e argumentam que ele “pode mudar a internet como conhecemos hoje e prejudicar usuários e empreendedores”. O texto deixa evidentes a complexidade e os interesses sobre a governança das informações que impactam diretamente em temas sensíveis, como o acesso a conteúdo confiável sobre os métodos contraceptivos.


Também, essa discussão traz à tona questões extremamente importantes, como o acesso a informações oferecidas pelas diferentes plataformas digitais e as características da infodemia. A ausência de uma moderação eficaz sobre esses conteúdos colabora para a disseminação deles, o que afeta diretamente diversas escolhas importantes na sociedade em geral e, especialmente, na saúde das mulheres.


É essencial encontrar um equilíbrio entre o combate à desinformação e a preservação do acesso à informação. Esse equilíbrio é fundamental para que as pessoas não tomem decisões pessoais relevantes com base em publicações populares mas conflitantes, experiências pessoais de outros usuários ou não verificadas, antes de seguir orientações médicas.


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Gravidez na Adolescência


Na adolescência, enquanto se desenvolvem física e intelectualmente, os jovens podem refletir sobre o futuro e traçar planos. É nessa fase que a educação se faz necessária como forma de orientar decisões que podem impactar na vida deles. Entre as orientações, devem estar momentos que promovam o debate aberto sobre a saúde dos corpos, o sistema reprodutivo e os métodos contraceptivos. Entretanto, geralmente, tais assuntos são vistos como polêmicos, muitas vezes, inclusive, censurados nos planos de aula. Em 2019, uma pesquisa do Datafolha apontou que 44% dos brasileiros reprovam a educação sexual nas escolas.


Se a escola não cumprir o papel de trazer essas temáticas no seu currículo, adolescentes podem, mais do que nunca, utilizar redes sociais e a própria internet como fontes de pesquisa, dessa forma deparam-se com informações falsas ou incompletas. De acordo com o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), diversos fatores sociais, incluindo a ausência de educação de qualidade, influenciam na maternidade precoce. Meninas em situações de vulnerabilidade social, que iniciam sua vida sexual cada vez mais cedo, que não utilizam métodos contraceptivos, também não têm acesso à educação sexual podem enfrentar maiores riscos.


Diante dessa situação, faz-se necessário um recorte de classes sociais, gênero e raça. Por exemplo, as relações de gênero desiguais podem perpetuar problemas enfrentados há muitas gerações pelas mulheres, que carregam grande parte das responsabilidades em relação aos filhos e abdicam de seu futuro, carreira e estudos.


Ao pensar na realidade brasileira, os dados são alarmantes. De acordo com o Sistema único de Saúde (SUS), a cada hora nascem 44 filhos de adolescentes. Em meio aos dados, estão jovens entre 10 e 14 anos. Como na legislação brasileira o ato sexual com meninas abaixo dos 14 anos é considerado estupro de vulnerável, pode-se concluir que o Brasil está diante de números alarmantes também sobre violência sexual e estupro de vulneravél.


Mulheres enfrentam ao longo da vida diversas violências. Meninas descobrem cedo as dificuldades de existir e sobreviver nessa sociedade. Oferecer educação de qualidade, inclusive sobre sexualidade, é um direito. Afinal, desde jovens, elas precisam ser incentivadas a organizar, planejar e decidir os próprios caminhos a partir de informação e orientação. Em contrapartida, alimentar o medo nas adolescentes não é um método contraceptivo e pode gerar inúmeros traumas em relação à saúde sexual. A solução, longe de amedrontar, está na educação de qualidade, que oferece possibilidades de sonhar para além da maternidade.


Aborto


Outra situação que se mantém no Brasil relacionada à liberdade reprodutiva e ao planejamento é a de abortos clandestinos. Num país cuja lei permite apenas três casos de aborto: gravidez resultado de estupro, anencefalia fetal e risco de vida da mãe, não há dados exatos sobre interrupções provocadas de gestação sem amparo legal. No entanto, a Pesquisa Nacional do Aborto (PNA), realizada no país em 2016, 2019 e 2021, estima que 500 mil abortos são praticados anualmente e que uma em cada sete brasileiras de 40 anos já interrompeu intencionalmente ao menos uma gravidez. A estimativa é de que, em 43% dos abortos, há necessidade de internação da mulher devido a complicações. Outro dado refere-se ao fato de que 52% das mulheres haviam interrompido uma gestação antes dos 19 anos, entre elas 46% tinham mais de 16 anos e 6% eram ainda meninas entre 12 e 14 anos, idade na qual o sexo configura estupro.


O último grupo, de adolescentes com menos de 14 anos, em tese, teria acesso ao aborto legalmente, pois relação sexual com até essa idade é estupro, a legislação entende que não há consentimento numa relação com meninas de tão precoce idade. Porém, mesmo nos casos previstos em lei, verifica-se grande dificuldade para mulheres receberem o atendimento necessário: apenas 6 dos 27 estados brasileiros divulgam informação sobre interrupção da gravidez nas páginas das secretarias de saúde. Além da falta de informação sobre o direito ao aborto e onde ele é realizado, muitos médicos recusam-se a fazer o procedimento, embora a lei garanta que clínicas e profissionais mantidos pelo SUS disponibilizem esse atendimento.


A Organização Mundial da Saúde alerta que o aborto inseguro, isto é, realizado em condições precárias e sem atendimento profissional competente, é uma das cinco principais causas de morte materna no mundo. Agir de modo a garantir o atendimento adequado nos casos previstos em lei e a discussão sobre essa prática são ações urgentes para que o Brasil alcance a meta de reduzir pela metade a mortalidade materna, um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.


Ainda, a PNA mostra que a prática do aborto ilegal envolve mulheres de vários perfis, mas há maior quantidade de abortamentos entre aquelas de menor escolaridade, que ganham até um salário mínimo, e a chance de recorrer a esse ato é 46% entre a população negra. Ou seja, existe, nesse tema também, a implicação da desigualdade social no Brasil, que se reflete em piores condições de vida, segurança e informação, consequentemente, reduz a possibilidade de acesso a planejamento familiar para a maioria da população feminina.

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Tocofobia


No mês de outubro de 2024, o Instagram da Folha de São Paulo em conjunto com o perfil Todas, da mesma empresa, postou a seguinte reportagem: “DIU hormonal pode estar associado a maior risco de câncer de mama em mulheres, aponta estudo”. Entre os comentários, estavam os de médicas criticando a matéria e o título sensacionalista e de mulheres questionando o uso do método: “Meu Deus do céu! Parece que o povo odeia mulheres no br, agora que o DIU tá em alta lá vem essas coisas”; “Essa postagem é um desserviço”; “Eu nem sei o que dizer. Tem 12 anos que não sei o que é dor de uma cólica que acabava com meu dia. Remédios e remédios”. “Minha vida era terrível antes do Mirena. Então, realmente é complicado. Queria ter outra opção”.


Ao falar sobre o assunto em pleno Outubro Rosa, mês de luta contra o câncer de mama, e depositar no método contraceptivo DIU o risco desse mesmo câncer, o jornal cria uma espécie de sensacionalismo reprodutivo. Um alarme, uma espécie de gatilho é disparado, e as mulheres passam a desconfiar de mais um método. Toda a desconfiança reflete-se na própria insegurança na contracepção, a qual leva ao desespero e ao agravamento de questões psicológicas relacionadas à Tocofobia, nome dado ao medo de engravidar ou parir.


Afinal, se nenhum método é confiável ou eficaz, a gravidez pode ser uma realidade. Assim, imersas em informações nem sempre cautelosas ou verdadeiras, as mulheres sentem-se em um beco sem saída, em que a liberdade de escolha pela maternidade é cerceada, enquanto mais uma vez o controle é exercido sobre os corpos femininos, já que o medo é uma forma de controle.


A Tocofobia é uma patologia que pode ser incluída no Transtorno de Ansiedade. Essa fobia prejudica a saúde, modifica o cotidiano da mulher e a coloca em estado de alerta diante dos possíveis perigos de engravidar. Em muitos relatos, as mulheres com esse transtorno realizam mais de um teste de gravidez mensalmente, combinam diferentes métodos contraceptivos ou optam pela abstinência sexual, pois não encontram garantias em nenhuma forma de contracepção.


Tayná Portilho, 34 anos, psicóloga, artista e professora, explica como a Tocofobia pode estar diretamente ligada a uma pressão da sociedade em relação a não ter filhos na adolescência, que não é acompanhada por orientação, assim o assunto já surge na vida das mulheres como um temor sem solução. Ela conta que “Ficar grávida na adolescência era um medo compartilhado no meu ciclo social, né? Tanto é que, para ficar grávida com 34 anos, eu ainda senti o mesmo medo de ficar grávida na adolescência”. A psicóloga continua: “Essa era e é uma questão levantada como um medo, como algo a ser temido mesmo e não como algo para você se cuidar, para você ter noção do seu corpo, para ter gerenciamento da sua vida, ter planos e projetos”.


Tayná acredita que a pressão que as jovens sentem para evitar a gravidez precoce, sem que haja conversas esclarecedoras sobre o assunto, torna-se um sentimento arrastado ao longo da vida. Esse pode ser um dos motivos desencadeadores da Tocofobia. A psicóloga explica a diferença do medo e da fobia nesse caso: “A fobia vai trazer prejuízos para nossa vida. O medo é uma coisa que você consegue administrar um pouco melhor, a fobia vai te impedir de fazer coisas. Você vai deixar de fazer coisas, ou se organizar, ou demandar muita energia para que aquilo (uma gravidez) não aconteça”. Ela também comenta sobre o tratamento: “Tem várias abordagens de psicoterapia que vão ajudar, para se apropriar de fato desse sentimento assim, desse medo ou dessa fobia. No caso específico da fobia, eu acredito que tem que ter uma intervenção medicamentosa e também o acompanhamento psiquiátrico”.


Sobre as soluções, a psicóloga complementa: “Pode sempre pensar também em ações coletivas, o quanto isso fortalece. Não é porque você tem medo, que você tem uma fobia, que você tem que olhar só para si. Se você se insere em alguma discussão mais ampla em algum grupo e que tem alguma ação em relação a isso você consegue também se tratar”. Como ações relacionadas à saúde pública, a psicóloga defende a existência de espaços em que as mulheres possam conversar sobre a escolha de não ter filhos. Além disso, ela explica que esses espaços podem ser em unidades de saúde que, inclusive, poderiam desenvolver ações voltadas ao acolhimento de adolescentes com intervenções de especialistas para conversar nas comunidades.


Todas essas ações e orientações são importantes para que as mulheres possam se desvencilhar das pressões exercidas socialmente. Estar em grupo, debater mais as questões poderia ser uma forma de não se sentir sozinha diante do medo de engravidar ou da escolha de ser ou não mãe: “Se a gente tivesse mais espaços de fala, de troca, eu acho que essas questões sairiam muito desse nível individual. E a gente consegue fazer circular mais as vozes, as experiências e as expectativas, até para que pessoas que tenham pontos de vista diferentes consigam ouvir e se ajudar”. Essas redes de apoio se diferenciariam das redes sociais, que virtualmente podem criar uma espécie de pânico coletivo quando existe alto compartilhamento de exceções as quais disparam gatilhos para quem tem medo de engravidar.


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Esterilização


Na busca por mecanismos que propiciem à mulher impedir a contracepção, são encontradas algumas alternativas à simples observação do próprio organismo para determinar a maior ou menor probabilidade de engravidar de acordo com a identificação de características do período fértil, por tabelinha ou atenção ao muco vaginal. São eles: preservativos masculinos e femininos, as populares camisinhas; uso de hormônios em anticoncepcionais hormonais orais (conhecidos como pílulas anticoncepcionais) de uso diário, em anticoncepcional hormonal injetável ou implantes subcutâneos; implante de dispositivo intrauterino (DIU) com ou sem hormônio; e método cirúrgico, a chamada laqueadura.


Segundo o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para a realização da cirurgia, da Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasco), a laqueadura “consiste na interrupção da continuidade das tubas uterinas” por meio de laparoscopia, “cirurgia realizada por meio de três ou quatro pequenos cortes realizados no abdome”, ou Microlaparotomia, corte parecido com uma cesárea, ou vaginal, ou ainda pós-cesárea, quando realizada junto ao parto cesáreo. De acordo com a mesma federação, esse método é um dos mais efetivos para impedir a gravidez, apesar de que “existe uma porcentagem de falha de 0,41% que independe do paciente ou do médico”. Entretanto, esse é o procedimento considerado mais radical na busca por impedir uma gravidez indesejada, visto que sua reversão é muito difícil.

A lei nº 14.443, cujo projeto foi apresentado em 2020, entrou em vigor em 05 de março de 2023 e determina mudanças significativas nas ações em prol de assegurar o desejo de mulheres que, como Adriana, decidem não ter mais filhos, ou mesmo de jovens que escolhem não passar pela experiência da maternidade. Tal dispositivo legal visa garantir a liberdade reprodutiva, ou seja, que as cidadãs façam o próprio planejamento familiar, de modo a escolherem se serão ou não mães e, em caso afirmativo, quando terão filhos e na quantidade que julgarem adequada a seu estilo de vida.


A legislação anterior, lei nº 9.263, de 1996, entende o planejamento familiar “como o conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal” e afirma que isso é direito de todo cidadão brasileiro. Também, determina que “o planejamento familiar orienta-se por ações preventivas e educativas e pela garantia de acesso igualitário a informações, meios, métodos e técnicas disponíveis para a regulação da fecundidade”. Ainda, estipula a necessidade de ações em prol da saúde sexual de maneira ampla, isto é, controle de doenças sexualmente transmissíveis, assistência na contracepção e concepção, atendimento em prol de prevenção e tratamento de cânceres (“cérvico-uterino, de mama, de próstata e de pênis”), o último acrescido em emenda na legislação em 2014.


A nova regulamentação (lei nº 14.443), chamada de Lei do Planejamento Familiar, traz alterações significativas apenas nas regras para a realização das cirurgias de esterilização de mulheres e homens, laqueadura e vasectomia, respectivamente. No artigo 10, é estabelecido que se permite a esterilização voluntária, por laqueadura ou vasectomia, “em homens e mulheres com capacidade civil plena e maiores de 21 (vinte e um) anos de idade ou, pelo menos, com 2 (dois) filhos vivos”. A lei ainda determina prazo mínimo de dois meses entre a pessoa mostrar o desejo pela cirurgia e a execução desta, durante esse tempo, deve haver “acesso a serviço de regulação da fecundidade” e “aconselhamento multidisciplinar” para conscientizar sobre a escolha cirúrgica definitiva.


Muitas vezes, mulheres optam pela esterilização enquanto método mas não recebem apoio necessário, ou acolhimento, em relação às suas decisões durante o processo: “Deveria ser um espaço de acolhimento, mas na prática a gente sabe que nem sempre é. E aí seria muito bom você passar por esse processo se sentindo de fato fortalecida nessa decisão, porque ela não é absurda nem distante. Ela é válida e faz sentido em vários contextos, mas tem muito tabu em relação a isso”, explica a psicóloga Tayná Portilho.


Sobre esse tabu em relação à cirurgia de esterilização, a psicóloga questiona o fato de que não há a mesma dificuldade quando se abordam outros procedimentos cirúrgicos. É evidenciado, assim, que também se trata de uma intervenção no processo de escolha de ter ou não ter filhos, já que essa é uma decisão que desagrada a sociedade de forma geral: “Enquanto essa cirurgia é totalmente cuidada, vamos colocar assim como um processo bem assistido e que demanda várias etapas, outras cirurgias, estéticas, por exemplo, não têm o menor cuidado. Quando a escolha da mulher é questionada? Quando ela está atendendo um padrão, ela não é tão questionada. E aí, quando ela não está atendendo o padrão, quando ela está indo contra um discurso dominante, aí sim a gente tem uma série de questionamentos”, afirma Tayná. Ela ainda acrescenta: “Eu acho que esses procedimentos são válidos sim. Eu acho que, em toda cirurgia, a gente deveria passar por um processo de preparo, mas só que isso é feito de forma seletiva”.


Vitória tem 24 anos, é estudante, e pretende realizar a cirurgia de esterilização diante da escolha de não gerar filhos. Os motivos para essa decisão são diversos e incluem desde questões particulares até ambientais. Ela explica que essa definição é marcada por experiências desde a infância: “Eu acho que eu não tenho perfil para ser mãe, eu acho que eu não seria uma boa mãe. É por questão mesmo de que eu, como criança, eu não brincava com bonecas. Assim, eu brincava com bonecas tipo Barbie, sempre o símbolo da mulher independente, de trabalhar”, explica a estudante.


Ao longo da adolescência, a influência da família em algumas discussões sobre o tema também influenciaram Vitória: “Eu vim de uma família em que a minha avó sempre foi muito preocupada com a questão do meio ambiente, com essa questão de preservar a natureza. E aí na adolescência eu ainda tinha esses debates com a minha avó antes dela falecer”. Ela explica: “E conforme eu fui vendo alguns avanços, e aí a gente vai estudando na escola sobre essas questões ambientais, eu comecei a pensar. E falei: cara, não dá para botar uma criança no mundo da maneira que o mundo já está”.


Vitória mantém um relacionamento de sete anos com o companheiro. Segundo ela, ambos optaram por não ter filhos, e os motivos dele, que são diferentes dos dela, também a fizeram pensar sobre essa decisão. “A visão dele é a seguinte: para que que eu vou botar alguém no mundo que vai me dar gastos financeiros, vai me dar gastos emocionais e, às vezes, eu não tenho essa condição financeira e emocional, para depois a pessoa ser ingrata a mim ou tipo não visualizar que eu dei minha vida por ela que eu fiz essas questões?”. A jovem acrescenta: “Então eu percebi que isso vem de uma questão do histórico psicológico dele que ele tem com a mãe dele, a família dele”.


A estudante explica que a decisão de fazer a esterilização foi adiada muitas vezes e que foi impedida por ginecologistas: “O que me impediu são as ginecologistas, as próprias médicas em que eu já fui. Elas têm uma aversão a quando você fala decidida: Eu não quero ter filhos!”. Vitória ainda explica que percebe uma espécie de tendência dos médicos a tentar convencê-la a mudar sua decisão: “Dá vontade de falar assim: você não sabe o que eu vivi na minha infância, você não sabe o que eu já discuti com o meu companheiro, você não sabe que eu já discuti com a minha mãe, você não sabe o que eu já discuti com x, y, z pessoas sobre isso, o que eu já pesquisei e o que eu quero pra minha vida. E o que eu não quero para minha vida”.


A situação vivenciada por Vitória é semelhante à de Mariana e de várias jovens que fazem parte da primeira geração a buscar falar abertamente sobre outra possibilidade de constituição de família, aquela formada por duas pessoas, um casal hetero ou homossexual. De acordo com o Censo 2022, divulgado pelo pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no fim de outubro, a quantidade de casais sem filhos no Brasil aumentou de 16,1% em 2010 para 20,2% agora. Também houve crescimento da quantidade de pessoas que moram sozinhas, de 12,2% em 2010 para 18,9% em 2022, em todas as faixas etárias e não mais apenas entre os idosos.


Embora, num primeiro momento, a legislação pareça impor burocracias e adiamento ou desistência da cirurgia, as regras visam contribuir para que a mulher possa ter conhecimento tanto sobre o procedimento cirúrgico quanto sobre os métodos anticoncepcionais, para que pondere sobre os benefícios mas também sobre os riscos de complicações e a irreversibilidade da laqueadura. Caso a mulher operada, em algum momento futuro, mude de ideia sobre a maternidade, a alternativa para gerar os próprios filhos é a fertilização in vitro (FIV), procedimento que, além de custo elevado, exige tratamento hormonal e disponibilidade da paciente para dedicar-se ao controle da ovulação e cujo sucesso varia entre 25% e 40%, de acordo com a Febrasgo. Essa variação na efetividade da FIV ocorre porque quanto mais avançada for a idade da futura mãe menor o número de óvulos por ela produzidos e menores são as chances de engravidar, as quais se tornam mínimas após os 42 anos de idade (Febrasgo, 2023).


A ginecologista e obstetra Marcela Carneiro, quando questionada sobre o comportamento das jovens que buscam o consultório médico no que diz respeito à escolha por ser ou não mãe, afirma que a maior procura é por métodos não-definitivos, principalmente no atendimento particular ou por convênio. A profissional entende que a alteração na legislação “de uma forma geral, é um ganho para a população feminina que permite essa liberdade no sentido de escolha de querer ou não ser mãe e de poder decidir isso sem a obrigatoriedade de uma aprovação masculina”. Mesmo assim, no atendimento público, a espera pela cirurgia de laqueadura chega a mais de um ano.


A médica também lembra que o uso de métodos contraceptivos hormonais é buscado pela maioria de suas pacientes porque, além de quererem adiar a gravidez, esperam obter benefícios, como não menstruar, reduzir sintomas de tensão pré-menstrual ou cólicas e fluxo sanguíneo. “O método contraceptivo, muitas vezes prescrito, não é visando só não ser mãe, não é visando só à maternidade, mas é um ciclo que é desregulado, é um sangramento que é muito aumentado e que prejudica as atividades do dia, é uma cólica que não melhora. Então, são fatores muito individualizados e mesmo aquela paciente que é laqueada não necessariamente não vai ter necessidade de uso de algum método hormonal para tratamento de outras funções”, acrescenta a ginecologista.


Além disso, Marcela mostra-se preocupada com a precocidade permitida para a decisão pela esterilização: “pensando a longo prazo, trazer essa idade cada vez mais jovem dessa definição pela maternidade ou não talvez seja um pouco questionável, porque muitas vezes essas jovens que podem mudar de ideia”. Para ela, frente às mudanças que normalmente ocorrem na vida de qualquer pessoa e que fazem com que se altere a maneira de pensar, agir e os desejos individuais, “a disponibilização de outros métodos, que são métodos de longa duração (os DIUs, hormonais e não-hormonais, os implantes), permite postergar essa decisão sobre a maternidade ou não nessa população extremamente jovem”. A médica reflete, ainda, sobre as questões sociais: “Inclusive, a pessoa jovem está chegando no mercado de trabalho e há a possibilidade de mudança de condição social, de condição financeira. Eu não quero ser mãe porque eu não tenho condições ou eu não me vejo mãe nas condições que eu vivo hoje? Mas se isso mudar, será que eu vou me ver como mãe ou não? Então, é tudo uma balança, um equilíbrio nesse sentido”.


O arrependimento após passar pela cirurgia de esterilização não é raro tanto entre mulheres quanto entre homens, mas há maior incidência entre elas. Os motivos passam por mudanças como a apresentada pela ginecologista Marcela, o encontro de novo parceiro que deseja ser pai, a perda de filhos, no caso das que fazem o procedimento durante ou após um parto. E nem sempre a paciente foi orientada de modo adequado sobre a irreversibilidade da laqueadura.


Em suma, os avanços médicos que permitem formas diferentes de contracepção em prol do planejamento familiar e do maior bem-estar das mulheres, também as alterações na legislação permitindo a opção da esterilização precoce não significam, ainda, a garantia efetiva dos direitos sexuais e reprodutivos frente a questões como os preconceitos e a desinformação ainda disseminados na sociedade. Porém, vislumbra-se movimentos significativos na busca pela evolução objetivada tanto nos documentos nacionais quanto na Agenda 2030 da ONU.


Ginecologista e Obstetra Marcela Carneiro explica sobre laqueadura e outros métodos contraceptivos de saúde feminina.



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