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Jornalistas Inventados Reinventam Liberdade

O que a iniciativa de troca de repórteres por avatares de IA representa no cenário político venezuelano pós eleições


Por Ana Clara Reis e Maria Clara Rocha


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A primeira instância é um vídeo comum. Uma jornalista ocupa a tela e se apresenta, em espanhol, ao público que a assiste. Com entonação clara e trejeitos característicos de quem trabalha com jornalismo televisivo, os espectadores são apresentados a "La Chama". Seu nome atípico é, talvez, o primeiro indício de que esse não se trata de um boletim de notícias padrão. O co-apresentador da matéria, "El Pana", aparece logo em seguida, apesar de sua aparência usual, os movimentos repetitivos e quase robóticos também causam certa estranheza. 


Não demoramos muito para receber a peça do quebra-cabeça que faltava: “Não somos reais. Fomos gerados por Inteligência Artificial, mas os nossos conteúdos, sim, são reais” afirmam os apresentadores, em tradução livre. 


Conhecemos, então, o princípio da “Operação Retuit”: evadir da censura e repressão que sofrem os jornalistas no governo de Nicolás Maduro. Com avatares gerados por Inteligência Artificial (IA), "La Chama" e "El Pana", trazem informações verificadas sobre o conflito político que ocorre na Venezuela após as eleições presidenciais do dia 28 de Julho. Nesse contexto, a utilização de IA não se qualifica como uma tendência geracional, mas sim, uma necessidade para a continuidade da prática jornalística no país. 


A iniciativa foi coordenada pela plataforma “Connectas”, grupo, sediado na Colômbia, que promove a produção, o intercâmbio e a difusão de informação sobre temas-chave para o desenvolvimento das Américas. Carlos Eduardo Huertas, diretor do projeto e coordenador da “Operação Retuit”, afirma para a CNN Venezuela, acerca da inserção das ferramentas generativas no âmbito jornalístico: “No queremos sustituir a los periodistas, sino protegerlos” (Não queremos substituir os jornalistas, mas sim, protegê-los, em tradução livre). 


Após as eleições presidenciais de 2024, o regime de Maduro desencadeou a onda de repressão mais severa vista na Venezuela nas últimas duas décadas. De acordo com a ONG Foro Penal, mais de 1 700 indivíduos foram detidos, dentre eles, figuras políticas, defensores dos direitos humanos, trabalhadores humanitários, protestantes pacíficos, jornalistas, ativistas e cidadãos sem nenhum envolvimento direto com as manifestações. 



Gráfico apresenta a evolução do índice de censura na América Latina entre os anos de 2013 a 2024 apurado pela Repórteres Sem Fronteiras.


Faces de uma Eleição


O dia 28 de julho significava uma possível mudança para o governo venezuelano. Em uma campanha inédita na história recente da Venezuela, as sondagens de institutos como Datincorp, Megaanálisis e ORC Consultores, apontavam o candidato da oposição, Edmundo González, como favorito nas intenções de voto.  A possibilidade de não reeleição de Nicolás Maduro, que ocupa o cargo de presidente desde 2013, representava um desgaste do chavismo - regime instaurado em 1998 pela figura de Hugo Chávez - no poder executivo do país. 


Principais personalidades das eleições venezuelanas que ocorreram em 28 de julho de 2024.


No entanto, o resultado oficial das urnas mostrou outro cenário. O Conselho Nacional Eleitoral (CNE) declarou Nicolás Maduro como vencedor com 51,9% dos votos, totalizando cerca de 6,4 milhões de pessoas. A decisão, porém, não foi acompanhada pela publicação das atas de votação, o que levantou suspeitas de fraude e gerou uma onda de críticas da oposição e da comunidade internacional.


Na Venezuela, o processo eleitoral é eletrônico e assegura a transparência em várias etapas. Cada eleitor, após se identificar por impressão digital, escolhe seu candidato em uma máquina de votação, que então imprime um comprovante para ser depositado em uma urna física. Ao final da votação, cada máquina gera uma “ata de escrutínio” em papel, que detalha os votos para cada candidato e inclui elementos de segurança, como um código "hash" único, o endereço MAC da máquina e um QR code com informações específicas da mesa de votação.


Essas atas são transmitidas ao Conselho Nacional Eleitoral (CNE) por uma rede criptografada, garantindo a integridade dos dados. Além disso, representantes dos partidos recebem cópias impressas das atas, permitindo a auditoria de parte dos resultados através da comparação entre a contagem digital e os votos físicos. Esse processo robusto é projetado para garantir a autenticidade e permitir uma verificação independente dos resultados, fundamental para a transparência eleitoral.


Na noite das eleições, autoridades do CNE anunciaram que o sistema do órgão havia sido hackeado, o que justificava a lentidão na transmissão dos resultados parciais ao longo do dia e, mais tarde, o atraso na divulgação das atas. Esse processo, então, levantou uma série de questionamentos em relação à sua integridade, que culminou no acionamento do Tribunal Supremo de Justiça (TSJ) para a realização de uma auditoria das eleições. 


No dia 22 de agosto, Caryslia Rodríguez, presidente do Tribunal, reconheceu a reeleição do presidente venezuelano e certificou a credibilidade do material eleitoral apresentado pelo CNE. Proibindo, assim, a divulgação das atas eleitorais que a comunidade internacional requisitava desde o dia 28 de julho e reiterando a decisão do TSJ como irreversível. 


É válido pontuar que, no dia anterior ao pronunciamento, a coalizão opositora da Venezuela já havia informado que não reconheceria nenhuma decisão da Suprema Corte do país em relação ao resultado. Após as eleições, diante da falta de divulgação das atas, a oposição, liderada por María Corina Machado, acusou o regime de Nicolás Maduro de manipulação e publicou suas próprias versões das atas. 


Esses documentos indicam Edmundo González Urrutia como o candidato eleito. De acordo com os dados apresentados, González Urrutia teria recebido 67,08% dos votos, o que representa 7,3 milhões de pessoas, enquanto Nicolás Maduro ficaria com 30,46%, cerca de 3,3 milhões de votos. Para sustentar esse argumento, a oposição disponibilizou um mapa interativo, a partir do qual o usuário pode averiguar mesa por mesa as atas coletadas através de voluntários.


Operação Toc Toc



Tun tun, ¿quién es?

¡gente de paz!

¡Ábranos la puerta

que ya es navidad! 


Embora tradicionalmente seja uma canção popular de Natal na Venezuela, “Tun Tun! Quién Es?” adquiriu um novo significado nos últimos anos. A letra que antes funcionava como presságio para receber os tempos natalinos, hoje, para muitos é um lembrete de um ciclo de repressão, nomeado “Operação Toc Toc” (Tun Tun, em espanhol). 


A princípio utilizada em 2017 pelo deputado Diosdado Cabello, a expressão foi apropriada pelo governo para nomear uma operação não formal de segurança voltada contra manifestantes e críticos do regime de Nicolás Maduro.  Em 2024, a “Operação Toc Toc” foi retomada como uma tática para conter a onda de manifestações desencadeada pelo resultado das eleições presidenciais de 28 de julho. 


Marcada por uma série de detenções que incluem manifestantes, figuras políticas opositoras e até pessoas que, por qualquer razão, aparentam estar envolvidas em atividades que desafiam o regime. As ações do governo, no entanto, vão além das prisões. Relatos indicam que casas de opositores e críticos do regime têm sido invadidas por forças de segurança, muitas vezes sem mandado judicial ou qualquer justificativa formal, analisa a ONG Foro Penal. 


María Oropeza, líder regional da oposição em Portuguesa, foi presa arbitrariamente por forças de Nicolás Maduro. Durante o momento, ela realizou uma transmissão ao vivo no Instagram.


A censura e o controle das redes sociais também se intensificaram. Agências de segurança monitoram postagens e mensagens, em especial de figuras influentes ou comunidades conhecidas por apoiar a oposição. Em alguns casos, usuários que compartilham informações contrárias ao governo acabam sendo intimados a prestar depoimentos ou mesmo sendo detidos por tempo indeterminado. 


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Diosdado Cabello, deputado chavista, usou a #TunTunLlegóLaPaz em uma postagem na rede social X no dia 3 de agosto. Ele pontua a “Operação Toc Toc” como uma ferramenta contra o ódio.


Com o aumento dos relatos de detenções e anulação de passaportes após as eleições, jornalistas se viram forçados a tornar seus perfis privados ou a abandonar completamente as postagens. Podcasts políticos foram interrompidos e veículos de imprensa independentes na Venezuela, como o Caracas Chronicles, passaram a publicar artigos sem assinatura. Mostrar o próprio rosto nas redes, tornou-se um risco que poucos podem se permitir.


 Reinventando a Liberdade


A “Operação Retuit” é denominada em uma referência irônica às operações governamentais que visam intimidar a população da Venezuela, com relação a manifestações contrárias ao governo vigente, a exemplo da “Operação Toc Toc”. Até então, o projeto conta com uma série de 15 vídeos curtos os quais têm como objetivo abordar os desdobramentos das eleições presidenciais, difundindo informações relevantes e confiáveis, apuradas por veículos venezuelanos associados ao grupo,  acerca dos eventos que ocorrem no país.


O formato empregado não é aleatório, o projeto é pensado para ser especificamente compartilhado nas redes sociais. Essa preferência pelas plataformas digitais surge em resposta ao fechamento em massa de veículos de comunicação tradicionais, como rádio e TV, na última década, conforme relatado pela ONG venezuelana Espacio Público. Em agosto de 2024, a organização apontou que pelo menos 15 emissoras de rádio, em nove estados do país, tiveram suas atividades encerradas, ações descritas como arbitrárias e executadas por agentes da Comissão Nacional de Telecomunicações (Conatel). 


Nesse cenário, no qual o direito à informação e à livre expressão enfrentam sérias restrições, grande parte dos venezuelanos se volta às redes sociais para buscar atualizações e acessar notícias que não são amplamente divulgadas pelos meios de comunicação tradicionais. De acordo com o DataReportal’s Global Digital 2024 Report, o país conta com 21,37 milhões de dispositivos móveis conectados, representando 73,4% da população total. Desse número, foram identificadas 14,05 milhões de contas ativas em redes sociais em janeiro de 2024.


Ao analisarmos as mídias, em específico, o relatório aponta o Facebook com 14,05 milhões de usuários, enquanto o Instagram reúne 8,15 milhões, e o TikTok soma 12,35 milhões de contas. A rede social X (antigo Twitter) aparece em último lugar, com 2,31 milhões de usuários. Apesar disso, é nessa plataforma que ocorre o maior volume de compartilhamento de informações e distribuição jornalística, segundo o relatório do ProBox, observatório digital de monitoramento das tendências sociopolíticas da Venezuela nas plataformas digitais. 


É dentro desse contexto tecnológico que se resume a lógica da “Operação Retuit”. A adaptabilidade para plataformas diversas propicia que os conteúdos divulgados estejam em debate em diferentes redes sociais, aproveitando de seu intrínseco efeito multiplicador. Os boletins de "La Chama", gíria venezuelana para a garota, e "El pana", o amigo, não ultrapassam quatro minutos em duração para adequarem-se ao padrão favorecido por essas plataformas.  


A iniciativa faz parte da campanha #LaHoraDeVenezuela, também coordenada pelo grupo criador da operação e, que tinha por objetivo o compartilhamento e visibilidade de notícias de qualidade acerca da corrida presidencial histórica no país, em que a vitória da oposição significaria um possível fim do chavismo no governo executivo da nação após 25 anos no poder. O projeto também faz parceria com o veículo digital venezuelano, El Pitazo. E inclui em sua organização 70 jornalistas independentes, 20 jornalistas aprendizes e 20 repórteres cidadãos ao redor do país, de acordo com o Centro Knight para o Jornalismo nas Américas da Universidade do Texas. 


Para garantir a ampla divulgação desse projeto, além do espanhol, os vídeos da “Operação Retuit” estão disponíveis em inglês. Outra campanha promovida pelo grupo é a tradução do conteúdo para ainda mais idiomas, como russo e chinês. Em entrevista à CNN Venezuela, Huertas pontua o desejo da plataforma de alcançar audiências de países aliados políticos de Maduro. 


O dinamismo das redes sociais e a percepção e consumo do público não são aspectos novos ao Connectas e, portanto, a estruturação da ordem das informações a serem apresentadas sempre ocorre após o mesmo aviso dos apresentadores: “Não somos reais. Fomos gerados por Inteligência Artificial, mas os nossos conteúdos, sim, são reais”. A justificativa para tal é simples, contextualizar os espectadores acerca de um cenário pouco explorado no jornalismo, a apresentação de imagens de inteligência artificial não como ferramentas para propagar desinformação, mas sim, que permitem a divulgação de informações confiáveis. 


Enquanto está em debate em grande parte do mundo o impacto da utilização de Inteligência Artificial no jornalismo e suas futuras consequências na empregabilidade do ramo, o cenário na Venezuela é diferente. Em um país onde expor o próprio rosto em reportagens contrárias ao regime pode resultar em prisão, a IA pode ser vista sob um prisma mais favorável: a proteção dos jornalistas.


Para uma compreensão mais ampla sobre esse contexto, evidenciamos uma "entrevista" de "La Chama" e "El pana" à jornalista Alejandra Oraa, no programa Café CNN. Com seu vestido longo em tons terrosos, "La Chama", pontua que o projeto é realizado por profissionais comprometidos com a verdade e o exercício informativo rigoroso.  Logo em seguida, seu co-apresentador "El Pana" sentado em um banquinho de madeira e vestindo uma camisa xadrez, afirma que a natureza artificial de sua existência decorre justamente da continuidade do trabalho efetivo dos jornalistas que estão por traz das informações verificadas que compartilha, uma vez que, de acordo com o âncora: "Aún no han inventado leyes que nos persigan" (Ainda não inventaram leis que nos persigam, em tradução livre).


É válido destacar que ao menos dez jornalistas foram presos desde meados de junho e oito seguem na prisão sob acusações que incluem terrorismo, de acordo com o grupo Repórteres sem Fronteiras (RSF).


Em entrevista, os avatares La Chama e El Pana abordam a relação ética entre a sua existência e a prática jornalística.


Plataformização do Discurso


Durante os sete dias que sucederam as eleições presidenciais na Venezuela,  o então reeleito presidente Nicolás Maduro teceu diversas críticas em relação às plataformas digitais, como Tik Tok e Instagram. Caracterizando-as, em um evento com a Guarda Nacional, como os principais instrumentos multiplicadores de ódio e fascismo no país e propondo a construção de um regulamento que auxiliasse a barrar a ascensão de um movimento fascista na Venezuela, através das redes. 


Esse discurso estaria relacionado com o fato de que, de acordo com Maduro, a nação lidava pela primeira vez com uma tentativa de golpe de Estado ciber-fascita, cujo objetivo era dividir a Força Armada Nacional Bolivariana (FANB). "Continuam acreditando que os militares venezuelanos estão subordinados às ordens da oligarquia sangue azul ou do império norte-americano. Por isso, [postularam] a campanha de assalto cibernético nas contas do WhatsApp, chamadas e mensagens." afirmou Maduro, em tradução livre. 


A campanha contra a plataforma de mensagens continuou no programa "Con Maduro+", no qual o presidente apagou, ao vivo, o "Whatsapp" de seu celular, pontuando a rede como imperialismo tecnológico. Além disso, Maduro também incentivou, no mesmo segmento, que a família e juventude venezuelana repetisse o seu comportamento e retirasse o aplicativo de seu cotidiano.


Maduro já havia afirmado sua opinião contra as redes sociais, acusando-as de promover um imperialismo tecnológico sobre a Venezuela.


A intensificação da retórica contra as redes sociais culminou na ordem de bloqueio temporário da plataforma X (antigo Twitter), no dia 08 de agosto, inicialmente estabelecido por 10 dias, mas que perdura até os dias atuais no país. Segundo o Probox, observatório digital que monitora as tendências sociopolíticas da Venezuela pela plataforma, a decisão foi tomada em um contexto de declínio da influência digital do chavismo, que historicamente dominava o espaço com bots e trolls campanhas de hashtags promovidas pelo Ministério de Comunicação e Informação (MIPPCI). 


Vale lembrar que o bloqueio foi implementado após as eleições de 28 de julho, que foram marcadas por alegações de fraude e uma onda de protestos. Durante esse período, hashtags como #VenezuelaLibreDeDictadura e #YoDefiendoMiVoto emergiram como expressões de resistência e mobilização social.


É importante ressaltar que a postura de Nicolás Maduro nas redes não foi sempre a mesma. Durante sua campanha eleitoral, ele se destacou nas mídias sociais, especialmente no TikTok,  em que utilizou coreografias pop e uma abordagem lúdica para estabelecer conexão com o público jovem, promovendo suas iniciativas e buscando atrair esse eleitorado. Sua presença em plataformas como Spotify, na qual compartilhava listas de músicas, e seu engajamento em campanhas publicitárias, refletem uma estratégia de comunicação que, inicialmente, visava a popularização e a normalização de sua imagem. Entretanto, essa retórica parece ter mudado recentemente devido a uma aparente mudança na perspectiva de Maduro em relação ao discurso político e a plataformatização deste.


É dentro desse panorama das plataformas digitais que a iniciativa "Operação Retuit", do grupo Connectas, se adapta para garantir que seus boletins informativos tenham a capacidade de ser compartilhados em diferentes meios.


Quão real é essa segurança? 


Apesar de sagaz, é importante pontuar que não há garantia concreta do anonimato dos jornalistas do projeto ou de sua segurança. Estamos lidando com um cenário novo e pouco explorado. É válido manter o ceticismo sobre quão suficientes são os avatares para esconder as faces por trás da informação divulgada. 


Em entrevista à CNN Venezuela, sobre a "Operación Retuit",  Shelly Palmer, professor de mídia avançada na Universidade de Syracuse, EUA,  afirma a necessidade de questionar a eficiência dessa ferramenta, uma vez que, para ele, é irreal a ideia de que uma voz falsa e uma imagem feita por Inteligência Artificial são verdadeiramente capazes de esconder a origem de um conteúdo. "A menos que você seja um especialista absoluto em cobrir seus rastros digitalmente, não há nada verdadeiramente sigiloso", pontua Palmer, em tradução livre, no artigo de Stefano Pozzebon: "En Venezuela, los presentadores de IA no sustituyen a los periodistas. Los protegen". 


Cabe pontuar que, apesar de ressalvas como essa, a iniciativa do grupo Connectas permanece, para seus integrantes, a solução mais viável para assegurar a prática e o dever jornalístico no país. Uma das jornalistas participantes, que preferiu manter o anonimato em entrevista ao Centro Internacional para Jornalistas, ressaltou: "Iríamos nos autocensurar cada vez mais se nossos nomes estivessem expostos."


O Dilema Ético 


Nos últimos anos, as ferramentas de Inteligência Artificial ganharam popularidade e começaram a ser amplamente adotadas para automatizar atividades em diversos setores. O jornalismo, embora relutante nos primeiros anos, também seguiu essa tendência e agora vive uma era marcada pelo uso crescente da IA. Grandes veículos como a BBC, o The New York Times e o The Washington Post já declararam a adoção dessas tecnologias em suas redações. Eles utilizam esses recursos para processar grandes volumes de dados, gerar boletins noticiosos em coberturas de grande escala, personalizar conteúdos para os usuários e identificar comportamentos e padrões. 


Um exemplo notável ocorreu em 2016, quando o jornal The Washington Post se destacou ao usar sua própria ferramenta, chamada “Heliograf”, para cobrir os Jogos Olímpicos do Rio e as eleições presidenciais dos EUA. A IA gerava automaticamente atualizações curtas em tempo real, informando sobre placares esportivos e, mais tarde naquele ano, sobre os resultados do processo eleitoral.


Esse uso de ferramentas de Inteligência Artificial no campo jornalístico levanta uma série de questões éticas, o que explica por que sua implementação no setor não foi imediata e ainda é vista com desconfiança por muitos. Um dos principais dilemas envolve a precisão e a veracidade das informações, já que modelos de IA podem interpretar dados de forma incorreta e gerar resultados errôneos. Essas falhas representam um risco de disseminação de desinformação e conteúdos enganosos, comprometendo os princípios fundamentais da profissão e a integridade das notícias.


Outro ponto sensível é a transparência no uso dessa tecnologia. Jornalistas e organizações de mídia precisam ser claros sobre quando e como utilizam a IA. Informar ao público se uma notícia foi escrita ou parcialmente gerada por esses sistemas é o que garante que a confiabilidade e a origem da informação possam ser devidamente avaliadas. Entrevistamos a jornalista colombiana Diana Milena Ramírez Hoyos, coordenadora do curso de graduação em jornalismo da Universidade de Antioquia, que afirma que os grandes meios de comunicação têm explicado como estão usando a IA, mas de forma muito geral. “Seria muito interessante conhecer o que se passa nesses acordos, para que isso possa, também, guiar as demais redações do mundo”, diz a especialista, que desenvolve sua tese de doutorado sobre o uso de inteligências artificiais generativas no jornalismo.


Os princípios jornalísticos e a transparência não são negociáveis. A “Carta de Paris sobre IA e Jornalismo”, lançada pela organização Repórteres sem Fronteiras em parceria com outras 16 entidades, estabelece dez princípios para o uso responsável e ético da Inteligência Artificial no jornalismo. O documento ressalta que o desenvolvimento e a aplicação de sistemas de IA devem respeitar os valores fundamentais da ética profissional, como veracidade, precisão, imparcialidade, justiça e responsabilidade.


Quais seriam, então, os limites aceitáveis para o uso dessa tecnologia? Quais regulamentações são necessárias? E quais impactos isso terá no futuro? Para Ramírez Hoyos, é difícil prever o que vem pela frente, uma vez que tudo acontece tão rapidamente. Apesar de ser possível identificar os problemas, suas soluções não foram plenamente encontradas.


Felipe Pena, jornalista, escritor e professor do curso de jornalismo da Universidade Federal Fluminense, em entrevista para a reportagem, reflete sobre esse cenário que é relativamente novo para o ramo jornalístico, “A maneira ética de usar a inteligência artificial ainda é algo que está sendo construído enquanto a gente está conhecendo a inteligência artificial”.


Na “Operação Retuit”, a Inteligência Artificial é utilizada como ferramenta fundamental para driblar a censura e, então, garantir o princípio da iniciativa. O grupo Connectas equilibra o uso de IA com a ética jornalística através da clareza com o público. Desde o começo do projeto, e em todos os vídeos da série, é informado que os apresentadores assistidos não são reais, mas os dados e informações compartilhadas sim. Essa abordagem reflete o compromisso dos profissionais envolvidos em manter a confiança do espectador e a qualidade do conteúdo produzido, reforçando a responsabilidade com a verdade e a precisão informativa. A jornalista da Colômbia analisa esse caso como um uso positivo da tecnologia, “Se usamos uma narrativa, um personagem fictício criado com inteligência artificial para não expor os jornalistas de carne e osso, pois está ótimo”.


Esta não é a primeira vez que avatares gerados por Inteligência Artificial são usados para disseminar notícias na Venezuela. Em 2023, foi publicado no YouTube o telejornal House of News en Español, com jornalistas virtuais, Noah e Daren, falando sobre um suposto boom econômico no país. O jornal espanhol El País revelou que os vídeos faziam parte de uma campanha de propaganda promovida pelo regime chavista. Marivi Marín Vásquez, diretora executiva da ProBox e cientista política, afirmou que a diferença entre os avatares promovidos pelo governo e a “Operação Retuit” está na intenção: enquanto o regime utiliza essas figuras para difundir propaganda e desinformação, a iniciativa busca proteger jornalistas e ativistas através de avatares, mantendo a integridade dos profissionais e a veracidade das informações.


O uso de Inteligência Artificial no jornalismo tem se expandido rapidamente, tornando-se uma ferramenta cada vez mais presente na produção e distribuição de conteúdos. Embora levante esses desafios éticos, a integração da IA na área parece inevitável, acompanhando as demandas tecnológicas e a transformação do consumo de notícias. Sobre esse cenário recente, Ramírez Hoyos pondera: “A tecnologia em si não é ruim, ou seja, não é o problema. O problema se dá em como a utilizamos e a apropriamos”. Por esta razão, as discussões latentes sobre ética se fazem relevantes para o campo jornalístico e o futuro da profissão.


A Incerteza de Reinventar-se


Até a publicação desta reportagem a  "Operação Retuit"  tem finalizada a sua primeira temporada. Devido ao panorama das plataformas digitais em que a estratégia de evasão de censura adentra, não é possível afirmar com precisão o real impacto da iniciativa no debate político venezuelano. Até então, nenhum órgão oficial governamental comentou publicamente acerca do projeto que une IA com jornalismo. Carlos Eduardo Huertas, coordenador do Connectas, afirma à BBC Mundo sobre a operação: “Es un ejercicio de periodismo colaborativo sin precedentes en la región, que está permitiendo brindar información verificada, rigurosa y de calidad a más audiencias” (É um exercício de jornalismo colaborativo sem precedentes na região, que está permitindo levar informação verificada, rigorosa e de qualidade a mais audiências).


Em um contexto em que a Venezuela ocupa a 156ª posição no Ranking Mundial da Liberdade de Imprensa, promovido pela RSF, que compara o grau de liberdade desfrutado por jornalistas e meios de comunicação em 180 países ou territórios, a utilização de inteligência artificial não se enquadra como moda, mas sim, como uma solução inteligente para um cenário específico de censura que permite com que a prática jornalística prossiga com qualidade na nação. Evitando por vezes, até mesmo, a autocensura dos próprios jornalistas que participam da iniciativa, devido ao escudo garantido pelos avatares  "La Chama" e "El Pana". 


No que tange a ainda incerta relação entre jornalismo e IA, Felipe Pena coloca: "Se a ferramenta é utilizada para fugir algo que é uma censura, que seja utilizada, mas a gente tem que ter a certeza que é para isso que ela está sendo utilizada. Se a gente tem, então, eticamente ela está bem ancorada. Está bem a instalar-se".


Cabe pontuar a dificuldade de efetivamente postular o cenário atual que caracteriza a Venezuela apenas por meios de comunicação digitais. Apesar de nos ancorarmos em informações e fontes de veículos credíveis, enquanto jornalistas, nos encontramos em um contexto semelhante aos organizadores da “Operação Retuit”: navegar em um ambiente digital sujeito a bolhas informacionais.  









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